Foto: Vinicius Becker (Diário)
Episódios envolvendo insultos, chutes, difamação, exclusão social ou até mesmo publicação de ofensas nas redes sociais entre adolescentes têm nome, e não é “brincadeira”. Isso é bullying! O termo derivado do inglês bully (valentão, em português) se refere ao ato de “intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de humilhação, discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais”.
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O conceito, que surgiu na década de 1970 a partir de estudos do psicólogo sueco Dan Olweus, chegou ao Brasil em 1990, sendo citado, inclusive, na Lei 8.069/1990, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Desde então, especialistas brasileiros têm buscado mensurar os impactos da prática que ocorre em diversos ambientes, sendo principalmente preocupante nas escolas e nas redes sociais.
Nos últimos anos, o Brasil tem registrado um aumento significativo de episódios de bullying e cyberbullying. Segundo um levantamento feito pelo Colégio Notarial do Brasil, entidade que representa os tabelionatos brasileiros, foram 19 mil casos somente em 2010. 13 anos depois, o número chegou a 121 mil. O índice de 2024, considerado o mais recente, dá conta de mais de 120 mil casos, ou seja, uma média de 10 mil notificações por mês.
No Rio Grande do Sul, o cenário também é alarmante, uma vez que dados do Comitê Estadual de Promoção da Vida e Prevenção do Suicídio apontam o bullying e o cyberbullying como fatores de risco para lesões autoprovocadas e suicídio entre adolescentes de 15 a 19 anos. Nesta reportagem, veja quais são os riscos do bullying na adolescência, o impacto das redes sociais neste contexto, as mudanças na legislação e quais são os papéis dos pais e da escola no combate a esse mal.
O bullying na adolescência é uma das principais preocupações da psicóloga clínica e doutora em Psicologia Social Dorian Mônica Arpini. Autora de livros como Violência e exclusão: adolescência em grupos populares (2009) e Psicologia, famílias e leis: desafios à realidade brasileira (2012), ela afirma que os efeitos da prática são visíveis no comportamento do adolescente e devem ser observados pelos pais ou autoridades escolares:

– O jovem que está sofrendo bullying, de alguma forma, começa a sinalizar. Se a escola não quer ver e os pais também não, a tendência é de que isso se prolongue até chegar a uma situação limite ou de risco maior. Estar atento a esses fenômenos vai ser importante para mitigar a força que eles podem ter. Os pais devem prestar atenção na experiência dos filhos na escola e perguntar como foi o dia, como é a relação com os colegas. Se o filho dizer que está tudo bem, continue se interessando. Se ele não falar e você perceber que as coisas não vão bem, vá até a escola e pergunte para que, se a instituição não estiver prestando a atenção, passe a observar.
Dorian reforça que uma das consequências do bullying no ambiente escolar é o afastamento social do adolescente. Neste contexto, um outro espaço ganha força: o virtual.
– É uma característica da adolescência buscar o pertencimento, ou seja, um grupo com o qual o adolescente se identifique. E esses grupos online oferecem, muitas vezes, isso. Ele vai participar, estar vinculado e, no começo, parecerá tudo de bom. Tudo que um adolescente precisa, sem ter que passar pela dificuldade das relações presenciais, como a insegurança e o medo do fracasso e o de não ser aceito. Mas logo depois, isso pode se apresentar como um risco muito grande – alerta a psicóloga.
Cyberbullying
Com o advento da internet e das redes sociais, especialistas em saúde mental enfrentam um novo desafio: o cyberbullying. O movimento tem levado ofensas, calúnias, chantagens e ameaças para o ambiente virtual, aumentando o número de pessoas ou grupos atingidos. Na maior parte dos casos, o perfil do agressor é falso, o que dá início a um processo árduo e, muitas vezes, sem garantia de punição.
– As redes sociais vieram para facilitar muitas coisas e trazer ganhos. Mas, para os adolescentes, têm sido um espaço também de risco muito grande. Nas redes sociais, as coisas funcionam quase sempre de forma anônima, sem grandes consequências, com pessoas desconhecidas, e isso vai criando um caminho no qual não se acha mecanismos para parar ou sair. Então, aquilo que, em um primeiro momento, é libertador passa a ser um aprisionamento – reforça Dorian.
A especialista ressalta que as plataformas não desenvolvem pontos essenciais da relação presencial, como a empatia e o reconhecimento da dor do outro. Por isso, não podem ser vistas como substitutas. Outra preocupação é a mudança no senso de perigo proporcionada pelas redes sociais e que pode estar sendo ignorado por muitos responsáveis.
– Os pais não podem ficar de fora da experiência de rede dos filhos. Eles tinham a ideia que “estar dentro de casa é estar protegido” e a rua era um grande perigo. Hoje, precisamos entender que estar em casa não é, necessariamente, estar protegido. Foi isso que mudou, e os pais precisam prestar atenção. O espaço do quarto é privado, mas não precisa ser tanto a ponto de os pais não poderem participar da vida daquele filho. Muitas vezes, é naquele espaço que coisas não tão boas podem estar acontecendo. Querer estar mais perto dessa experiência (das redes sociais), certamente, vai diminuir os riscos que ela pode trazer – conclui.
Legislação
Acompanhando o cenário, a legislação sobre bullying e cyberbullying no Brasil tem ganhado cada vez mais atenção. Em janeiro de 2024, foi sancionada a Lei 14.811/24, que inclui os crimes de bullying e cyberbullying no Código Penal. As duas condutas integram o artigo que trata de constrangimento ilegal, sendo prevista multa para quem cometer bullying, e reclusão e multa para quem cometer o mesmo crime por meios virtuais.
Para cyberbullying, a pena é de 2 a 4 anos de prisão e multa. O Código Penal também prevê agravantes for cometido em grupo (mais de três autores), se houver uso de armas ou se envolver outros crimes violentos incluídos na legislação, entre outras medidas.
Casos de autolesões e suicídios crescem no RS
O Rio Grande do Sul registrou 11.205 notificações de violência autoprovocada (comportamento autolesivo e tentativa de suicídio) entre 2015 e 2023. Conforme o boletim epidemiológico divulgado pelo Comitê Estadual de Promoção da Vida e Prevenção do Suicídio, houve um aumento nas notificações desse tipo de lesão entre meninas na faixa etária de 10 a 14 anos. Entretanto, as maiores taxas ainda são referentes a faixa etária de 15 a 19 anos.
Bullying, cyberbullying, baixo rendimento escolar, conflitos geracionais, uso de substâncias psicoativas, abuso sexual, negligência, abandono, violência psicológica e física são alguns dos fatores de risco apontados pelo Comitê. Em entrevista ao Diário, o coordenador do Comitê, o psicólogo Bruno Moraes, disse que os dados preocupam:
– A situação é alarmante e nos preocupa muito, porque essa taxa de lesão autoprovocada na faixa etária de 15 a 19 anos é a maior de toda série histórica, que analisa as faixas de 5 a 9 anos até 80 ou mais. É importante destacar que, quando falamos de lesão autoprovocada, estamos falando tanto das tentativas de suícidio quanto daquelas lesões que infelizmente estão muito comuns nas escolas, que são os cortes nos braços e pernas. Então, esse é um dado que precisamos trabalhar e não será apenas os profissionais de saúde conseguirão resolver.

Os dados compilados pelo Centro Estadual de Vigilância em Saúde (Cevs) também buscam refletir sobre o bullying no contexto escolar e possíveis ações preventivas para mudar o cenário. Para o psicólogo, as instituições de ensino têm um papel essencial no combate à prática e não podem se abster disso.
– Temos que combater sempre o cyberbullying e o bullying, principalmente nas escolas. Quando falamos sobre prevenção é no sentido da escola fazer algo desde o início e não deixar o bullying se perpetuar. Se surgir um episódio, já faça algo para que isso não se agrave e cause mais transtornos ainda para a saúde mental desse adolescente – afirma.
Os impactos do cyberbullying também são mensurados por Moraes. Conforme ele, é necessário diálogo e compreensão sobre o espaço que as redes sociais têm na vida das novas gerações:
– Infelizmente, vivemos em uma época com muito bullying e cyberbullying e sabemos que essa faixa etária dá muito valor e depende muito do que é registrado e escrito nas redes sociais. Isso tudo pode explicar um pouco por que esses dados estão crescendo. Não podemos descartar o poder que a internet, as redes sociais e um comentário depreciativo têm na vida de um adolescente. Podemos até pensar que é só um comentário em uma foto, mas para o adolescente, isso significa muito e tem um grande impacto na saúde mental.
Entre as coordenadorias regionais de Saúde (CRS) com as maiores taxas de notificação de lesão autoprovocada, em 2023, estão a 13ª CRE de Santa Cruz do Sul (185,88), a 9ª CRE de Cruz Alta (176,57) e 4ª CRE, com sede em Santa Maria (170,44). Para combater esses números, Moraes sugere a realização de seminários locais e macroregionais nessas regiões, tendo como foco as demandas locais.
Mortalidade
No mesmo período analisado, de 2015 a 2023, foram registrados 12.376 mortes por suicídio no Estado. A maior parte das vítimas era do sexo masculino. Conforme o Comitê, a taxa de mortalidade na faixa de 15 a 19 anos é a segunda maior, atrás do grupo de 60 anos ou mais.
Entre os fatores que têm levado adolescentes a atentarem contra a própria vida, estão o bullying, o cyberbullying, a discriminação da comunidade LGBTQIAPN+, o abuso sexual, a imposição de um ideal de masculinidade tóxica aos homens, o assédio moral no trabalho, a negligência e o racismo. Em 2023, os maiores números de notificações de suicídio foram emitidos pela 13ª CRS de Santa Cruz do Sul (52,71%); a 4ª CRS de Santa Maria (50,59%), a 5ª CRS de Caxias do Sul (48,58%) e a 3ª CRS de Pelotas (42,54%)
Perante o atual cenário, Bruno Moraes acredita que o melhor a ser feito é refletir sobre os números e buscar soluções.
– Não podemos deixar de falar sobre o aumento que estamos encontrando em mortalidade por suicídio na faixa etária de 15 a 19 anos. Esses números estão crescendo por vários motivos, entre eles o bullying, o cyberbullying e a internet. Então, precisamos promover políticas de promoção de saúde mental eficazes, intersetoriais e que dialoguem com esses jovens. Temos que combater todos os episódios que estão se perpetuando nas escolas e casas e, principalmente, enfatizar a importância de buscar ajuda quando se está em sofrimento – concluiu o psicólogo.
Fique atento aos tipos de bullying
- Verbal – Insultos, xingamentos, apelidos pejorativos e comentários ofensivos sobre diferenças
- Físico – Agressões físicas como chutes, empurrões, tapas e socos
- Moral – Difamação, calúnia e disseminação de boatos
- Psicológico – Exclusão social, manipulação, chantagem e ameaças
- Cyberbullying – Ofensas em meios eletrônicos, como redes sociais, mensagens de texto e e-mail
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Santa Maria Acolhe
- Público-alvo – Adolescentes a partir de 12 anos, adultos e idosos
- Quanto – Gratuito
- Onde – Rua Conrado Hoffmann, 277, Bairro Nossa Senhora de Lourdes
- Horários – Segunda-feira a sexta-feira, das 8h ao meio-dia e das 13h às 17h (com exceção da quarta-feira, que é destinada para reunião de equipe)
- Informações – WhatsApp (55) 99164-4154
Centro de Valorização da Vida
- Telefone – Número 188
- Online – Pelo site www.cvv.org.br
- Presencial – Em postos de atendimento
- Posto do CVV em Santa Maria – Rua Pedro Pereira, 1.450, anexo à Rodoviária, no Bairro Nossa Senhora de Lourdes
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